31/03/2010

Uma outra história

por Ricardo de Jesus Machado


Quando todos olham para um lugar, sob uma mesma perspectiva, é preciso dar a volta, é preciso, acima de tudo, encontrar o indivíduo no coletivo.



Se Deus fosse mulher certamente seu nome seria Maria. Aliás, tenho lá minhas
dúvidas se Deus é realmente homem. Bem, mas isso é outra história. A minha história é
a história da Maria. Uma integrante do MST que vive o hiato entre a violência do
passado e a esperança no futuro. Maria Gardino Neto tem 36 anos, quatro filhos e um
coração que não pode ser medido em números. Maria está há pelo menos dois mil anos
de diferença de Jesus Cristo, mas vive ao melhor, ou pior, Jesus Christ way of life, ou seja, num barraco de lonas pretas e chão batido. As camas são tarimbas, uma espécie de estrado feito de taquaras, a água é trazida em baldes e um fogão a lenha dá conta dos alimentos cozidos. A simplicidade da casa é igualmente proporcional à hospitalidade da família. A mim, uma pessoa que Maria jamais havia posto os olhos, é concedido o melhor cômodo da casa. Além disso, as melhores refeições da semana – um arroz com carcaça de galinha, que não tem aprovação dos filhos, já que seus estômagos não estão acostumados a carne – são servidas nos dias de minha hospedagem. Mas isso é só o começo, a história de verdade ainda nem começou.

Maria mora em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, às margens da rodovia BR 386, conhecida como Tabaí- Canoas. Logo na chegada Maria me convida para conhecer o acampamento. Enquanto caminhamos, ela conta que abriu mão dos “confortos” da cidade, se é que água encanada, chuveiro quente e luz elétrica são confortos, para viver em um acampamento do MST. O motivo: medo da violência. “Busco aqui um futuro melhor para meus quatro filhos, pois na cidade tem muita droga, violência e desigualdade”. Dois barracos à esquerda da casa de Maria mora Dona Carlinda, uma senhora de 58 anos, que ingressou no MST a cerca de dois anos e que virou uma espécie de “farmacêutica” do acampamento. Enquanto conversávamos, um acampado, do alto de uma pequena colina, gritou: “- Dona Carlinda! A senhora tem aquela pomada pra eu passar no joelho do meu guri?”, Carlinda respondeu “- Tenho sim, mas depois lhe entrego, pois estou dando uma entrevista agora”. Carlinda nasceu no campo e no campo aprendeu o poder das ervas com seu avô, um italiano fugitivo da guerra. Mas a vida lhe trouxe à cidade grande e a cidade grande lhe devolveu ao campo, só que desta vez, com a dor de um filho a menos. Carlinda viu os traficantes assassinarem o varão da família e encontrou no Movimento um lugar para viver e criar sua neta de seis anos, agora, órfã de pai.

Levantamos, eu e Maria, subimos a mesma colina de onde veio grito que clamava pela pomada da farmacêutica. No alto do pequeno monte fica a escola. Uma escola simples. Poucas cadeiras, pouco conforto e muita disposição de aprender. Não é dia aula, afinal é um sábado, mas as crianças rodeiam o local. As professoras também. Lá em cima Maria me conta que é a merendeira do colégio e que tem muito orgulho do que faz. Ela me apresenta duas meninas, com vestimentas tão simples quanto a estrutura
da escola, e me diz que elas são professoras. Estér tem 20 anos e é educadora da 1ª série. Raquel tem 15 anos e dá aula para pré-escola. O trabalho, pelo que elas me contam, é aparentemente igual ao da cidade, no entanto elas destacam: “Aqui a gente conhece as famílias, se tem problema com o aluno a gente vai no barraco e conversa com os pais da criança”. Pergunto se elas não temem a extinção da escola por parte do Ministério Público e elas respondem: “Não. Porque se a escola não for legalizada, continuaremos dando aula, pois as crianças não podem ser privadas do direito a educação”. Do alto deste mesmo monte onde fica a escola, dá pra ver o pôr do sol. No horizonte se vê as torres que o Pólo Petroquímico construiu e por trás delas o sol, um sol que é mais vermelho que amarelo e que denuncia a hora de ir para o barraco, pois a noite aqui, é mais escura que na cidade.

No barraco é hora da janta. Um arroz com feijão e um pão sovado são o cardápio da noite. Para distrair um carteado preenche o intervalo da janta e o adormecer. É tarde. Estou deitado numa cama de tarimba. Penso em todas as coisas que tenho na minha casa: a luz, o chuveiro e o colchão. Me dou conta que minha felicidade não é maior que a felicidade da Maria. Pois apesar de tudo, Maria sorri, é verdade que não com tanta freqüência, mas seu sorriso é lindo, apesar de poucos dentes, e iluminado. E só depois de quase 25 anos entendi o que significa “o sono dos inocentes”, o sono de quem dorme no quarto ao lado. Se eu pudesse, desejaria que todas as pessoas tivessem uma noite como a que eu tive, deitado sob um barraco de lona e sobre uma cama de tarimba.Mas não desejo que meus colegas de quarto conheçam a cama de um hotel cinco estrelas, porque a diferença social causa revolta, a revolta causa violência e de violência eles estão fartos.

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